Capítulo 10 - Traços e Verdades
Philip segurava o envelope entre os dedos, sentindo o coração bater mais rápido do que gostaria de admitir. A caligrafia de Stela já lhe era familiar, e a ideia de que havia algo além das palavras dentro daquele envelope o deixou inquieto. Inspirou fundo antes de abri-lo, revelando um papel dobrado com a carta e, por trás dela, um desenho.
Ao desdobrar o papel, sentiu o ar escapar por um breve instante.
Era um retrato. Não apenas dele, mas de seus irmãos.
Stela os desenhara sem nunca tê-los visto, apenas com base em suas descrições. Henry estava retratado segurando uma luneta, olhando para o infinito, com uma expressão audaciosa, quase teimosa. William, por sua vez, estava imerso em um livro, os traços suaves refletindo sua personalidade sonhadora. Mas foi quando seus olhos recaíram sobre sua própria imagem que Philip sentiu algo se revirar dentro de si.
Ela o havia desenhado sentado à mesa, na mesma posição em que tantas vezes estivera — observando o vazio. Mas ali, nos traços dela, ele parecia diferente. Seu olhar tinha um brilho que ele nunca vira em seu próprio reflexo. E havia um sorriso discreto no canto de sua boca, um detalhe que Stela acrescentara, talvez sem perceber. Como se, através de sua visão, ela o enxergasse de uma forma que ele próprio desconhecia.
Philip engoliu em seco, sentindo um calor inesperado subir pelo peito. Um sorriso tímido escapou antes que ele percebesse, e rapidamente ele dobrou o papel, como se quisesse esconder aquilo até de si mesmo.
Foi então que ouviu uma risada baixa atrás de si.
— Lancaster, pelo visto tem algo interessante aí — Carter, o jovem soldado que sempre o provocava, cruzou os braços com um sorriso travesso. — Nunca vi você sorrir desse jeito. Quem é ela?
Philip revirou os olhos e balançou a cabeça.
— Ninguém. Apenas... uma amiga. — As palavras soaram estranhas em sua boca. Ele sabia que Stela era muito mais do que isso, ainda que não soubesse exatamente o que significava.
Carter arqueou as sobrancelhas, claramente se divertindo com a hesitação do amigo.
— Ah, sim, claro. Uma amiga que desenha você como se fosse um herói de romance. Sei bem como essas coisas começam... e como terminam. — Ele riu, cutucando o ombro de Philip. — Não me diga que está apaixonado, Lancaster.
Philip suspirou, exausto.
— Não há nada disso. Ela é apenas... alguém sob minha responsabilidade. Sou o guardião dela, nada mais. — A última frase foi dita de forma firme, como se precisasse convencer não apenas Carter, mas a si mesmo.
Carter soltou um assobio, balançando a cabeça.
— Ouvi você conversando com o general certa vez, mencionando que assumiu a tutela de uma família. Então, ela está morando com você, não está? — Carter perguntou, um brilho de provocação dançando em seus olhos, como se já soubesse a resposta.
Philip assentiu lentamente, já imaginando aonde aquilo iria.
— Uma mulher jovem e bela, morando sozinha com um soldado que diz não sentir nada por ela... Lancaster, meu amigo, isso é um desastre esperando para acontecer. Está brincando com fogo e nem percebe. — Carter deu um tapinha no ombro de Philip e riu. — Digo isso por experiência própria. Uma hora ou outra, você vai se pegar pensando nela de um jeito diferente. E, pelo que vejo, isso já começou.
Philip ficou em silêncio. Não queria admitir que as palavras do amigo faziam sentido. Mas, ao olhar novamente para o desenho dobrado em suas mãos, soube que Carter estava certo.
Stela estava começando a mexer com sua cabeça.
E aquilo era perigoso.
Philip se levantou, deu um leve tapa no ombro de Carter e, sem dizer nada, caminhou até a cabana onde os soldados descansavam. O interior era simples, com camas de campanha espalhadas, um pequeno fogão a lenha e algumas lamparinas acesas, dando um brilho amarelado ao ambiente. O cheiro de tabaco e terra molhada impregnava o espaço, trazendo-lhe uma sensação de cansaço familiar.
Sentou-se em um dos cantos, longe dos demais, e puxou novamente o envelope do bolso. O desenho ainda estava ali, intacto, e ele o observou mais uma vez. Era estranho ver-se daquela forma, através dos olhos de outra pessoa. Stela o enxergava com mais profundidade do que ele próprio se permitia. Talvez fosse isso que o incomodava e, ao mesmo tempo, o fascinava.
Respirou fundo, pegou um papel e um lápis e começou a escrever.
Stela,
Recebi sua carta e seu desenho. Não sei bem como expressar o que senti ao vê-lo, mas preciso lhe dizer que você tem um talento raro. Seus traços são precisos, mas o que mais me impressiona é como você consegue dar vida a algo que nunca viu. Meus irmãos... você os desenhou como se realmente os conhecesse. E eu...
Eu nunca me vi daquela forma antes.
Obrigado por isso. Obrigado por me enxergar, mesmo de tão longe.
Quanto a você, deveria continuar desenhando. Se isso lhe traz alegria, então não permita que nada tire isso de você. Há pouca beleza neste mundo agora, e o que você faz é um lembrete de que ela ainda existe.
Philip.
Philip fechou o envelope e passou a língua na borda para selá-lo. Olhou para o nome de Stela escrito com sua caligrafia firme e sentiu um aperto no peito. Levantou-se e caminhou até o oficial responsável pelo envio das correspondências. Ao entregar a carta, percebeu que sua mão estava mais firme do que esperava, mas sua mente estava um caos.
Carter tinha razão.
Aquilo era uma bomba-relógio.
Philip voltou para seu posto na base militar inglesa e tentou afastar os pensamentos que o perseguiam. Mas não conseguiu. Stela já havia invadido sua mente, e agora parecia impossível ignorá-la.
Ele se lembrava da primeira vez que a viu de verdade. Não apenas como a menina que deveria proteger, mas como a mulher que estava se tornando. A imagem dela no quintal brincando com Timont era uma lembrança nítida. Seus cabelos ruivos soltos ao vento, os fios reluzindo sob a luz da lua. O vestido simples que marcava suas curvas, colando-se à sua pele conforme ela girava o irmão no ar. O riso doce e puro, ecoando como uma melodia suave. Seus olhos verdes brilhavam com alegria, e Philip ficou paralisado, sentindo algo perigoso se instalar dentro de si.
Desde aquele dia, ele tentou evitar encará-la por tempo demais, tentou ignorar o calor estranho que percorria seu corpo sempre que a observava. Mas agora, apenas de lembrar, já sentia um incômodo latente pulsar em sua intimidade.
Que droga! Aquilo era errado.
Era impossível.
Ele não deveria desejá-la. Não poderia. Havia prometido protegê-la, não tomá-la para si. Além de ser mais velho, mais vivido, carregava sobre os ombros a responsabilidade de honrar aquela promessa. O dever vinha antes de tudo. Sempre viera. Philip não era um homem movido por desejos passageiros, nunca fora. Mas Stela estava começando a desmoronar as barreiras que ele ergueu durante toda a vida.
Cerrando os punhos, ele inspirou fundo, tentando afastar aqueles pensamentos. Havia uma guerra para vencer. E ele não podia se dar ao luxo de se perder nela.