Capítulo 6 - As Sombras do Passado
A primeira manhã na casa de Philip chegou silenciosa. O sol nascente lançava feixes dourados pelas frestas da janela, mas o peso da noite anterior ainda pairava sobre Stela. O bombardeio, a fuga, o resgate – tudo parecia um sonho distante, e ainda assim, estava ali, vivo em cada batida de seu coração acelerado.
Timont ainda dormia profundamente ao seu lado, os cabelos bagunçados e a respiração tranquila. Stela passou a mão suavemente pela testa do irmão e levantou-se, sentindo o frio do assoalho sob seus pés descalços. Com passos silenciosos, saiu do quarto e caminhou pelo corredor estreito, hesitante sobre como deveria se portar naquela casa estranha.
Na cozinha, encontrou Philip já acordado, sentado à mesa, observando o vapor subir da xícara entre suas mãos. Seu olhar encontrou o dela por um breve instante antes de ele desviar, voltando a encarar o café.
— Há pão e manteiga. Pode comer o quanto quiser — disse ele, apontando para a mesa sem erguer a voz.
Stela hesitou por um momento antes de se aproximar. Sentou-se lentamente e pegou um pedaço de pão, mastigando em silêncio. As marcas da noite anterior ainda tornavam suas palavras escassas. Philip, por outro lado, parecia tão fechado quanto sempre.
— Obrigada — murmurou, sem saber se era apenas pelo café da manhã ou por tudo o que ele fizera por ela e Timont.
Philip apenas assentiu, e o silêncio entre os dois se estendeu, carregado de significados não ditos. Mas, para Stela, havia algo reconfortante naquele novo abrigo – o cheiro de madeira, o calor do fogo, a presença silenciosa de Philip. Algo ali a fazia sentir-se segura, e ela se perguntou se poderia chamar aquele lugar de lar.
Inspirou fundo, deixando escapar um suspiro silencioso enquanto levava a xícara de chá aos lábios. O calor espalhou-se por seu peito, como se quisesse aquecer não apenas seu corpo, mas também as dúvidas que se acumulavam em sua mente. Olhou de soslaio para Philip, que mantinha o olhar fixo na mesa, aparentemente imerso em pensamentos distantes.
— Você sempre acorda tão cedo? — perguntou, quebrando o silêncio sem realmente esperar uma resposta significativa.
Philip ergueu os olhos para ela, o castanho profundo refletindo a luz tênue da manhã. Deu de ombros antes de responder.
— O hábito da guerra não desaparece tão fácil.
Stela assentiu lentamente. Não precisava perguntar mais nada para saber que a guerra ainda vivia nele, mesmo longe dos campos de batalha.
A casa rangeu levemente quando uma rajada de vento soprou lá fora, e Timont se mexeu no quarto, soltando um murmúrio sonolento. Stela voltou os olhos para a porta entreaberta e depois para Philip.
— Obrigada por nos deixar ficar aqui — repetiu, desta vez com mais firmeza.
Philip desviou o olhar, terminando o café com um último gole antes de se levantar.
— Apenas descansem. Amanhã veremos como seguir em frente.
Ele pegou o casaco pendurado na cadeira e saiu, deixando Stela sozinha com seus pensamentos e a sensação inquietante de que algo novo, e talvez irreversível, estava começando.
Philip não voltou pelo resto do dia. O silêncio da casa tornou-se ainda mais presente sem sua figura austera preenchendo o espaço. Stela sentiu-se inquieta com a ausência. Timont, por sua vez, parecia aceitar a nova moradia sem questionar demais, adaptando-se ao ambiente com a facilidade inocente das crianças.
Sem muito o que fazer, Stela começou a observar a casa com mais atenção. O local era simples, mas claramente marcado pelo descuido. O tempo na guerra e as ausências constantes de Philip haviam deixado tudo com um ar negligenciado. Poeira acumulada nos cantos, móveis deslocados sem um propósito aparente, e uma lareira que parecia há tempos sem uso.
Ela suspirou. Não gostava de ficar parada. Se iriam morar ali, ainda que temporariamente, ao menos poderia tornar o lugar mais acolhedor. Com isso em mente, pegou um pano e começou a limpar os móveis, varreu o chão e organizou o que estava ao seu alcance. Aos poucos, a casa foi tomando um aspecto mais aconchegante.
Enquanto trabalhava, Timont a seguia com curiosidade, fazendo perguntas incessantes.
— Philip mora sozinho? — ele perguntou, brincando com uma lasca de madeira caída do chão.
— Pelo que parece, sim — respondeu Stela, dobrando um cobertor esquecido no sofá.
— E por que ele é tão sério? — insistiu o garoto, franzindo a testa.
Stela parou por um instante, refletindo.
— Acho que a guerra faz isso com as pessoas, Timont. Muda elas.
O menino pareceu ponderar sobre isso por alguns segundos antes de dar de ombros e correr para a janela.
— Ele vai voltar? — questionou, olhando para fora.
Stela não tinha essa resposta, mas sentia o peso da espera. Philip era um homem de palavra, mas isso não significava que não tivesse seus próprios segredos. Quando o sol começou a se pôr e ele ainda não havia retornado, um nó se formou em sua garganta.
Sentou-se perto da lareira recém-limpa, sentindo o cheiro suave da madeira ressecada. Algo na casa começava a tomar forma, mas ainda parecia vazia sem seu dono.
Quando a noite caiu completamente, Stela se perguntou se Philip voltaria naquele dia, ou se ele sempre fora alguém fadado a estar em outro lugar.
Philip retornou já tarde da noite. Suas roupas estavam cobertas de poeira e fuligem, o rosto cansado e os ombros carregando um peso invisível. Stela se levantou assim que o viu entrar, surpresa pela sua aparência exausta.
Ele colocou um baú pesado sobre a mesa antes de falar, sua voz rouca pela fadiga.
— Fui até o lugar onde o míssil caiu — disse simplesmente. — Queria ver se algo podia ser recuperado.
Stela arregalou os olhos e deu um passo à frente quando ele abriu o baú. Dentro, estavam roupas suas e de Timont, um cobertor que reconheceu de sua antiga casa, e no fundo, um álbum de fotografias levemente chamuscado.
Ela pegou o álbum com as mãos trêmulas, passando os dedos sobre a capa gasta.
— Você... você trouxe isso para mim? — perguntou em um sussurro.
Philip assentiu, sem encará-la diretamente.
— Imaginei que seria importante.
O nó na garganta de Stela se desfez em um suspiro emocionado. Ela olhou para ele com uma nova percepção, mas Philip desviou o olhar para a casa ao redor.
— Você limpou tudo — comentou.
— Não queria dar trabalho. Quero ajudar enquanto estivermos aqui — respondeu, ainda segurando o álbum.
Philip se recostou na cadeira, exausto, mas sua voz saiu firme:
— Vocês terão abrigo aqui pelo tempo que precisarem. Nunca os mandaria embora. Só sairão daqui se quiserem ou encontrarem algo melhor.
Stela apertou o álbum contra o peito, sentindo um misto de gratidão e alívio.
— Obrigada, Philip — disse, com sinceridade.
Ele assentiu levemente, antes de finalmente relaxar os ombros e soltar um suspiro longo.
A noite avançava lá fora, mas dentro daquela casa, um novo vínculo parecia estar se formando, silencioso e inevitável.