Capítulo 7 - Entre Sombras e Suspiros
Os dias passaram como folhas levadas pelo vento, cada um trazendo pequenas mudanças que Stela não sabia nomear. O silêncio entre ela e Philip se tornara parte do cotidiano. Um entendimento tácito crescia entre os dois, construído em olhares fugidios e gestos discretos. Se antes a presença dele parecia distante, agora era algo constante, quase reconfortante, ainda que nenhum dos dois ousasse reconhecer isso em voz alta.
Timont, por sua vez, era o único que quebrava a quietude. Falava sem parar, fazia perguntas, puxava Philip pela mão para lhe mostrar qualquer descoberta insignificante. Philip nunca se irritava, mas também não demonstrava muita paciência. Stela observava com curiosidade como, apesar da seriedade, ele sempre atendia aos chamados do menino, ainda que fosse com um simples aceno de cabeça.
Certa tarde, depois do almoço, Timont saiu para brincar no quintal, como fazia todos os dias. Stela lavava a louça quando percebeu que o silêncio na casa estava diferente. O burburinho do irmão correndo, as pedras sendo chutadas, os risos – tudo desaparecera. Um pressentimento gelado percorreu sua espinha.
— Timont? — chamou, secando as mãos e caminhando até a porta dos fundos. O quintal estava vazio.
Franziu o cenho e saiu apressada, os olhos varrendo a área. Nada.
Philip apareceu ao seu lado, a expressão imediatamente alerta ao notar sua inquietação.
— O que foi? — perguntou.
— Timont. Ele não está aqui. — Sua voz tremeu levemente.
Philip olhou ao redor, seu olhar afiado analisando o espaço como se calculasse todas as direções possíveis para onde um menino poderia ter ido.
— Pegue um casaco — disse, já caminhando para o limite do quintal, onde começava a mata. — Vamos procurá-lo.
O coração de Stela martelava contra o peito enquanto ela o seguia, cada passo mais pesado que o anterior. O sol já começava a se pôr, tingindo o céu de tons alaranjados, e a ideia de Timont sozinho naquela imensidão verde a apavorava.
O mato alto roçava suas pernas, e galhos secos estalavam sob seus pés. Philip ia à frente, a postura rígida, os olhos atentos. Stela notava a maneira como ele se movia: calculado, preciso, como se estivesse de volta ao campo de batalha.
— TIMONT! — a voz de Stela ecoou pelo bosque, carregada de desespero.
Nada.
Philip parou e virou-se para ela, seus olhos castanhos encontrando os dela no crepúsculo. Por um instante, um silêncio pesado se instalou entre os dois. O medo era o mesmo, compartilhado sem necessidade de palavras.
— Ele não deve estar longe — disse Philip, a voz grave e firme, tentando acalmá-la. — Vamos continuar.
Quando Stela deu um passo à frente, tropeçou em uma raiz exposta e perdeu o equilíbrio. Em um reflexo rápido, Philip segurou-a, sua mão forte envolvendo sua cintura. O choque do contato arrepiou sua pele, e, por um segundo, esqueceram de respirar.
O rosto dele estava próximo demais. Ela podia sentir o calor de seu corpo, o cheiro de terra e madeira impregnado em suas roupas. A respiração de Philip roçou sua pele, e Stela prendeu o fôlego, incapaz de desviar o olhar. Os olhos dele escureceram por um instante, um turbilhão contido em silêncio.
Mas então ele a soltou.
— Cuidado — murmurou, desviando o olhar.
Stela assentiu, sem conseguir dizer nada. O momento se desfez no ar frio da floresta, mas algo dentro dela já havia acendido. Sem olhar para trás, seguiu ao lado de Philip, cada passo ecoando com um peso que não estava ali antes.
E então, ao longe, o som de uma risada infantil.
Stela disparou na direção do som, Philip logo atrás. Entre as árvores, encontraram Timont sentado sobre um tronco caído, brincando com algumas folhas secas como se nada tivesse acontecido.
— Timont! — Stela correu até ele, ajoelhando-se para abraçá-lo. — O que você estava fazendo? Nós ficamos preocupados!
O menino piscou para ela, confuso.
— Eu só queria pegar algumas folhas bonitas... Achei que vocês não iam demorar.
Philip soltou um suspiro e passou a mão pelo rosto, aliviado.
— Da próxima vez, avise antes de sair — disse, sua voz firme, mas sem aspereza.
Timont assentiu, parecendo levemente envergonhado.
Philip e Stela trocaram um último olhar, mas desta vez, nenhum dos dois soube o que dizer.
Na manhã seguinte, Stela acordou com um pequeno papel dobrado ao lado da xícara de chá na mesa da cozinha. Franziu a testa antes de pegá-lo.
“Vou até a cidade. Precisa de algo?” — Philip.
Ela sorriu, surpresa pelo gesto inesperado. Pegou um lápis e respondeu no mesmo papel: “Se encontrar farinha e açúcar, seria bom. Obrigada.”
Nas semanas seguintes, os bilhetes tornaram-se frequentes. Pequenas mensagens deixadas sobre a mesa, no batente da porta, presas na geladeira com um ímã enferrujado. Um meio silencioso de comunicação que ambos pareciam preferir.
“Amanhã volto mais tarde.”
“Fiz um ensopado. Se quiser, há um prato para você.”
“Timont quer saber se soldados também têm medo. Eu não soube responder.”
Philip demorou a deixar uma resposta para essa última, mas no dia seguinte, encontrou um bilhete escrito com uma caligrafia firme:
“Sim. Todos têm.”
A barreira de silêncio entre eles se desfazia pouco a pouco. Não eram conversas diretas, mas os papéis carregavam mais do que palavras. Começaram a trocar perguntas e até mesmo provocações sutis.
Certa noite, Stela encontrou um bilhete ao lado da chaleira: “Você sempre assobia quando cozinha, ou é só para espantar o tédio?”
Ela riu e escreveu de volta: “Melhor que seu hábito de encarar o nada como se estivesse resolvendo um mistério.”
A resposta veio no dia seguinte: “Talvez eu esteja.”
E foi assim que, sem perceberem, passaram a se conhecer de verdade. Philip não era apenas um soldado rígido e silencioso. E Stela não era apenas a menina que ele tinha jurado proteger. Sem perceber, estavam se tornando algo mais do que apenas desconhecidos dividindo um lar.
Timont, sempre atento, notou a mudança antes deles.
— Vocês estão diferentes — disse um dia, inclinando a cabeça enquanto olhava de um para o outro. — Agora não parecem tanto dois estranhos.
Philip e Stela se entreolharam, sem saber o que responder.
Porque talvez, Timont estivesse certo.
Numa manhã, quando Stela entrou na cozinha, encontrou um bilhete dobrado ao lado do bule de chá. A caligrafia firme e precisa de Philip a fez sentir um arrepio antes mesmo de ler as palavras. Com dedos hesitantes, ela abriu o papel.
"Fui convocado novamente. Minha folga terminou. Devo partir em poucos dias. Se tudo correr como dizem, esta será a última vez. A guerra está chegando ao fim. Os Aliados avançam rapidamente. Os soviéticos já cercaram Berlim, os americanos e nosso soldados britânicos seguem pelo outro lado. Preciso me juntar a eles. Hitler está encurralado em um bunker, sem saída. Dizem que é uma questão de tempo até que tudo acabe."
A guerra está chegando ao fim
Stela releu a frase várias vezes, mas em sua mente, as palavras soavam diferentes. "A guerra pode levá-lo de volta. A guerra pode tirá-lo de mim."
Seus olhos se fixaram no papel, mas sua mente vagou por lembranças recentes. O silêncio confortável que haviam construído. As trocas de bilhetes. As pequenas descobertas sobre Philip que ela nem havia notado que fazia. Ele já não era apenas um soldado distante, não era apenas um guardião imposto pelo destino. Ele fazia parte de sua rotina, de seu lar.
O medo apertou seu peito.
Stela fechou os olhos por um momento, sentindo o peso da perda iminente antes mesmo de ela acontecer. Não era justo. A guerra já levara seu pai. Já levara sua segurança, sua infância, sua casa. Agora, quando finalmente sentia que algo começava a se reconstruir, o destino ameaçava derrubar tudo outra vez.
Ela dobrou o bilhete e o guardou no avental, sem dizer nada. Quando Philip entrou na cozinha minutos depois, ela continuou mexendo a colher na xícara de chá, sem erguer os olhos. Ele não mencionou nada. E ela fingiu que não sabia.
Mas, por dentro, tudo dentro dela se despedaçava.
Os dias seguintes passaram como um borrão. Stela se esforçava para manter a rotina, mas algo dentro dela estava sempre inquieto. Philip, por sua vez, agia como se nada estivesse prestes a mudar. Era como se a guerra não estivesse à espreita, pronta para levá-lo de volta. Mas Stela sabia. Cada vez que ele saía para buscar mantimentos ou cortar lenha, ela se perguntava quantas dessas partidas ainda restavam antes da despedida definitiva.
Timont notou a tensão no ar. Ele olhava para Stela com curiosidade quando ela se distraía no meio de uma tarefa ou quando demorava um pouco mais para responder suas perguntas. Philip também parecia perceber, mas nunca dizia nada. O silêncio voltara a ocupar os espaços entre eles, mas agora não era mais confortável, e sim carregado de palavras não ditas.
Numa noite fria, depois que Timont adormeceu, Stela encontrou Philip sentado na varanda, um cigarro esquecido entre os dedos. Ela hesitou antes de se aproximar, mas então pegou um cobertor e se sentou ao lado dele.
— Você não quer falar sobre isso? — sua voz saiu baixa, mas firme.
Philip demorou a responder. Observava o céu escuro, onde poucas estrelas apareciam entre as nuvens.
— Não há o que falar — disse por fim. — Eu sabia que teria que voltar. Sempre soube.
Stela apertou o cobertor ao redor de si.
— Mas agora é diferente. — Ela não explicou o que queria dizer, e ele não perguntou.
Por alguns instantes, o único som foi o vento passando entre as árvores.
Então, num gesto hesitante, Philip estendeu a mão e pousou-a sobre a dela, que descansava sobre o cobertor. Foi um toque breve, mas firme. Não havia promessas ali. Apenas um reconhecimento mudo de que, de alguma forma, a presença um do outro agora significava algo.
E essa constatação, por si só, era tão assustadora quanto a guerra que se aproximava.
A noite foi silenciosa. Nenhum dos dois voltou a tocar no assunto, mas o peso do que estava por vir pairava sobre eles. Quando Stela se deitou naquela noite, demorou a dormir. O frio parecia mais cortante, e a ausência de qualquer ruído na casa fazia seu peito pesar. Ela se virou na cama inúmeras vezes, tentando encontrar uma posição confortável, mas a inquietação a dominava.
Philip também parecia insone. Stela ouviu seus passos pela casa, o ranger do assoalho denunciando que ele também não conseguia repousar. Em algum momento, o sono finalmente a venceu, mas era um descanso leve e fragmentado.
O dia da partida chegou depressa demais.
O sol ainda nem nascera completamente quando Philip apareceu na sala já pronto para partir. Vestia seu uniforme impecável, a jaqueta bem ajustada destacando seus ombros largos e a postura ereta de um homem preparado para a guerra. As medalhas discretas refletiam a pouca luz da manhã, e o tecido grosso do uniforme parecia torná-lo ainda mais imponente. Seu cabelo escuro estava alinhado, a barba bem aparada, e por um instante, Stela se pegou admirando sua figura, forte e resoluta. Mas seu olhar estava sombrio. Stela permaneceu parada na cozinha, os dedos apertando a borda da mesa. Seu coração batia forte, mas não sabia o que dizer.
Foi então que, sem pensar, ela correu até ele. Seus braços envolveram o pescoço de Philip com força, seu corpo colidindo contra o dele. O movimento foi tão inesperado que ela sentiu quando Philip ficou tenso por um instante, antes de relaxar e retribuir o abraço. Stela fechou os olhos, pressionando o rosto contra o tecido áspero do uniforme.
Uma única lágrima escorreu por seu rosto. Nem ela soube dizer por que havia se apegado tanto a ele. Talvez porque, além de Timont, Philip era tudo o que lhe restava. Sua única companhia, o único adulto ao seu redor. Mas era mais do que isso. Era o conforto silencioso que ele lhe dava sem perceber, os pequenos gestos que criavam um lar no meio do caos.
Timont, que até então observava em silêncio, se aproximou devagar. Seus olhos infantis carregavam uma dúvida que partiu o coração de Stela.
— Você vai voltar? Ou vai ser como o papai? — perguntou, sua voz pequena e hesitante.
Philip agachou-se diante do menino e bagunçou seus cabelos de leve, um gesto afetuoso que ele raramente demonstrava.
— Espero que eu volte — respondeu, sem falsas promessas.
Um ronco de motor soou do lado de fora. O ônibus militar havia chegado. Stela sentiu o corpo enrijecer. Philip se ergueu, pegou sua mochila e, com um último olhar para os dois, caminhou para fora. Stela e Timont o seguiram até a porta, observando enquanto ele se afastava.
Philip não olhou para trás.
E então, ele se foi.