Capítulo 9 - Entre Cartas e Confissões

O frio da madrugada cortava como lâminas afiadas, e o céu escuro se iluminava apenas com o brilho esporádico dos disparos distantes. Philip sentava-se próximo à fogueira improvisada, o calor das chamas oferecendo um mínimo de conforto contra o gelo que dominava o campo de batalha. Ao seu lado, alguns soldados descansavam, trocando histórias de casa, lembranças de tempos melhores.

— Você tem alguém te esperando, Lancaster? — perguntou um dos soldados, um rapaz jovem demais para estar ali, chamado Carter.

Philip hesitou por um momento, os olhos fixos na carta que acabara de receber. As letras desenhadas por mãos delicadas lhe traziam uma sensação de pertencimento que há muito havia esquecido.

— Tenho — respondeu, dobrando cuidadosamente o papel. — Não da forma que você pensa, mas alguém que me faz querer voltar.

Os homens ao redor riram baixo, trocando piadas e teorias sobre quem poderia ser essa pessoa misteriosa. Philip, no entanto, não deu mais detalhes. Apenas pegou um pedaço de papel e começou a escrever.

Stela,

Recebi sua carta e, pela primeira vez em muito tempo, me permiti sorrir. Saber que você e Timont estão bem me trouxe mais alívio do que posso expressar. Imagino Timont correndo com o envelope, como se carregasse algo precioso. Ele está certo. Sua carta foi um presente.

Sinto falta de casa, Stela. Mais do que poderia admitir em voz alta. A fazenda, os campos abertos, o cheiro de terra molhada depois da chuva. Minha mãe preparando o jantar, meu pai sentado na varanda com aquele olhar de quem sempre sabia o que fazer. Sinto falta das vozes dos meus irmãos, das discussões tolas, dos risos sem motivo. Aqui, o silêncio é diferente. Ele pesa, ecoa de um jeito que não deveria. Mesmo cercado de outros soldados, há um tipo de solidão que a guerra impõe, como se nos esvaziasse pouco a pouco.

*A guerra ainda não acabou, mas o fim parece mais próximo a cada dia. A esperança está no ar, ainda que misturada ao cheiro de pólvora. Nesses momentos de silêncio entre uma missão e outra, penso muito em casa. No que deixei para trás. No que ainda posso ter. Sei que durante todo esse tempo que moramos sob o mesmo teto, nunca mencionei minhas raízes, mas hoje, aqui no campo de batalha, percebo que você se daria muito bem com meus familiares. E agora sinto falta de estar com eles... *
E de ter sua companhia.

Escrevera essa última frase e, com uma borracha velha e surrada, apagou deixando um rastro de grafite na folha.

Philip hesitou. Sempre fora um homem reservado, e desabafar sobre seus sentimentos parecia estranho. Mas, ao reler a carta, percebeu que Stela era a única pessoa no mundo com quem ele poderia se abrir, mesmo de longe. A verdade era que ele estava cansado da guerra. O peso dos anos no front já o haviam desgastado, e tudo o que queria era voltar para casa, para sua família, para um mundo onde não precisasse mais carregar um rifle.

Durante as licenças em Londres, ele não ficara apenas vagando sem rumo ou afastado de sua casa onde Stela e Timont estavam. Visitara sua família. Revira os campos da fazenda, sentira o cheiro familiar do feno, ouvira a risada de seus irmãos ecoando no pátio. Mas, por mais que aquele lugar fosse seu lar, algo dentro dele o puxava de volta.

A lembrança de uma casa simples, de uma lareira acesa, de um bilhete preso na geladeira. De imaginar uma voz suave lendo cartas na calada da noite. De um par de olhos verdes que, sem perceber, haviam se tornado um ponto fixo em sua mente.

Philip suspirou, dobrou a carta e a colocou entre os documentos que seriam enviados ao amanhecer. Talvez estivesse se permitindo demais. Talvez estivesse cruzando um limite que não deveria. Mas, no fundo, sabia que precisava de um ombro amigo, mesmo que fosse o de uma mulher mais nova, a quem havia jurado ao pai proteger. Essa ideia deveria soar errada, mas não parecia. Stela era a única pessoa no mundo com quem ele poderia compartilhar esses pensamentos, mesmo de longe.

Carta de Stela para Philip

Philip,

Recebi sua carta esta manhã e, ao lê-la, senti como se pudesse ouvi-lo falando, como se você estivesse sentado na cadeira ao lado da lareira, contando sobre sua casa, sua família. Sei que não deve ser fácil falar sobre isso no meio da guerra, mas fico feliz que tenha compartilhado um pouco mais de quem você é comigo.

Posso imaginar sua fazenda. Imagino as manhãs frias, o cheiro do pão recém-assado, a terra úmida depois da chuva. Imagino seus irmãos, suas conversas, as brincadeiras na infância. Deve ter sido um lar bonito, cheio de vida. Entendo por que sente falta disso. Entendo por que quer voltar para lá.

Minha casa sempre foi mais silenciosa. Depois que minha mãe adoeceu, a presença dela era sentida mais pela falta do que pelo som de sua voz. Meu pai fazia o que podia, mas sempre pareceu carregar o peso do mundo nos ombros. E então veio a guerra. E com ela, a sensação de que eu precisava crescer rápido demais.

Eu costumava desenhar. Já contei isso? Antes de tudo desmoronar, antes da responsabilidade me engolir. Sempre gostei de capturar momentos no papel, de registrar as expressões das pessoas, os detalhes que poucos notavam. Mas com o tempo, parei. Talvez porque desenhar exigisse olhar para as coisas com atenção, e eu não queria olhar muito para a vida que levava.

Mas ultimamente, tenho sentido vontade de tentar de novo. Talvez um dia eu volte a desenhar.

Philip... Você diz que sente falta de casa. Se me permite perguntar, como era crescer cercado por sua família? Como eram os dias na fazenda? E seus irmãos? Tenho a impressão de que são muito diferentes de você, talvez mais falantes, mais impulsivos. Consigo imaginar você sendo o mais calado e observador entre eles. (Risos)

Cuide-se. Gosto quando escreve, por favor, continue.

Stela.

Carta de Philip para Stela

Stela,

Recebi sua carta hoje e, como sempre, senti um alívio estranho ao ver seu nome no envelope. Imaginar você aí, na casa que agora chamo de lar, enquanto eu estou aqui, cercado por fumaça e estilhaços, me dá um senso de normalidade que nem sei se mereço. Mas gosto disso.

Você perguntou sobre minha infância, sobre meus irmãos. Henry e William... Como descrevê-los? Henry sempre foi aquele que falava antes de pensar. Impulsivo, briguento, mas com um coração que o tornava impossível de odiar. Ele era o primeiro a saltar no lago congelado no inverno e o primeiro a arranjar briga na feira da vila. William, por outro lado, era um sonhador. Sempre com um livro nas mãos, sempre falando de terras distantes. Ele dizia que a fazenda era pequena demais para ele, que queria conhecer o mundo. No fundo, eu sabia que ele só queria encontrar um lugar que fosse verdadeiramente seu.

E eu? Acho que sempre fui aquele que segurava as pontas. O que mantinha a ordem entre os dois, que ficava ao lado do meu pai nos trabalhos mais duros, que aprendia a ser um homem antes mesmo de entender o que isso significava. Meu pai sempre dizia que um Lancaster deve carregar seu nome com honra, e eu levei isso a sério.

Mas e você, Stela? Você sempre viveu na mesma casa. Sei que sua infância não foi fácil, mas antes da guerra, antes das perdas, o que fazia você sorrir?

Philip.

Carta de Stela para Philip

Philip,

Fiquei sorrindo feito tola ao ler sua carta. Sinto que conheço Henry e William sem nunca tê-los visto. Imagino os três correndo pelos campos, seu pai observando de longe, sua mãe chamando para o jantar. Parece um quadro de tempos melhores, algo que poderia muito bem estar em um dos meus desenhos.

Sim, eu desenhava. Antes da guerra, antes da responsabilidade, antes da perda. Passava horas observando as pessoas, tentando capturar pequenos detalhes. Meu pai dizia que eu via o mundo com olhos diferentes. Mas parei. A guerra nos rouba mais do que pessoas, Philip. Ela nos rouba pedaços de nós mesmos. Agora, ao ler suas cartas, sinto que quero voltar a desenhar.

Você me perguntou o que me fazia sorrir... Bom, eu amava os dias de verão, quando corria descalça no jardim sem que meu pai me visse. Amava as noites frias quando minha mãe me contava histórias antigas. Amava segurar Timont quando ele era apenas um bebê e sentir que, apesar do caos do mundo, havia algo puro ali. Mas o tempo levou muitas dessas coisas. Sobrou apenas a necessidade de seguir em frente.

Philip... Você já amou alguém?

Stela.

Carta de Philip para Stela

Stela,

Eu deveria ter esperado essa pergunta. Mas confesso que, ao lê-la, hesitei antes de responder. Já amei alguém? Sim. Ou, pelo menos, achei que sim.

O nome dela era Eleanor. Era bela, cheia de vida, o tipo de mulher que iluminava qualquer ambiente. Eu a pedi em casamento antes de ir para a guerra, mas ela não quis esperar. Não a culpo. A guerra leva tudo, inclusive a paciência. Quando voltei para casa, ela já estava casada com outro homem, e eu percebi que talvez nunca tivesse sido amor de verdade. Apenas uma ilusão de algo que poderia ter sido.

Depois disso, nunca me permiti chegar perto o bastante de alguém para arriscar sentir aquilo de novo. O dever sempre veio primeiro. Meu pai dizia que um homem não deve ter distrações antes de cumprir sua missão. E eu acreditei nisso por muito tempo.

Mas talvez minha cabeça esteja mudando.

Esqueça. Estou divagando. Não deveria ter escrito isso.

Me fale sobre você, Stela. Nunca mencionou pretendentes, casamento ou qualquer plano para o futuro. É escolha sua ou a vida simplesmente seguiu outro caminho?

E sobre os desenhos... Eu realmente acho que deveria voltar a desenhar. Parece ser uma parte de você que a guerra tentou apagar, mas que ainda está aí, esperando para renascer. Se não for pedir muito, gostaria que me enviasse um desenho. Algo que represente você. 

Philip.

Carta de Stela para Philip

Philip,

Eu não sei o que responder à sua última carta. Fiquei com suas palavras na cabeça por horas, relendo-as, tentando entender o que exatamente você quis dizer. Mas talvez seja melhor não perguntar. Talvez seja melhor apenas continuar escrevendo, como temos feito.

Fico triste por saber de Eleanor. Não porque você a perdeu, mas porque você parece ter perdido algo dentro de si depois disso. Você diz que nunca mais se permitiu sentir nada parecido. Isso me soa injusto. Você é um homem bom, Philip. Merece mais do que apenas a guerra e o dever.

Quanto a mim, nunca pensei sobre pretendentes, sobre casamento, sobre futuro. A verdade é que nunca tive tempo para isso. Sempre estive ocupada sendo filha, depois irmã, depois sobrevivente. Acho que, no fundo, nunca imaginei que alguém olharia para mim de uma forma diferente. Mas talvez isso nunca tenha me incomodado de verdade. Ou talvez eu apenas nunca tenha parado para refletir sobre isso até agora.

Ah! Resolvi seguir seu conselho e voltei a desenhar. Há algo de reconfortante em segurar um lápis novamente, em permitir que as memórias tomem forma no papel. Estou enviando um desenho junto a esta carta... Se me permitir.

Stela.

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